1. Não vai ser hoje que o tópico principal será Kanye West
Acabei de assistir um episódio do programa This Is Pop, que está disponível na Netflix. Há uma renca de filmes, séries, desenhos e documentários disponíveis no catálogo, mas decidi dar play em um tema que, por mais batido que seja, me interessou só pelo fato de confirmar algo que sempre bato na tecla: que 808’s & Heartbreak, do Kanye West, foi uma das pedras angulares da música que conhecemos hoje.
Eu tinha 14 anos quando o álbum foi lançado. Nessa época, o rapaz de Atlanta não figurava entre meus músicos favoritos. Lembro de ter visto uma resenha sobre o disco na Revista Veja. Meus pais sempre recebiam edições antigas de publicações da Editora Abril de um cliente que os assinava. Diante do tédio em passar o dia numa papelaria durante minha adolescência, ler essas revistas eram um passatempo possível quando acabava o meu tempo de sentar a bunda na frente do computador da loja.
Quem escreveu a resenha deu duas estrelas ao álbum. A crítica negativa era justamente o uso excessivo do Autotune. Naquela época, o uso do software era um atestado de incompetência, visto que quem cantasse bem não precisaria usar um negócio que corrige a afinação da voz. Um disco inteiro com a voz explícita e deliberadamente corrigida pelo Autotune seria um sacrilégio completo, ainda mais nos anos 2000.
O álbum mudou a indústria musical, isso é inegável. Mas hoje eu não quero bater palmas pro rapper que nem de longe tem merecido tanto reconhecimento.
2. Sobre T-Pain e gongadas
Um dos principais personagens do episódio é o T-Pain. Em se tratando de Autotune, talvez ele seja o músico mais associado ao software. É, naturalmente, uma das primeiras lembranças do imaginário popular, apesar de não ter sido a primeira pessoa a utilizar a ferramenta.
Achei legal que a série documental mostra como a recepção negativa ao fato de T-Pain utilizar explicitamente o Autotune foi prejudicial à sua saúde mental. Não, eu não vou falar sobre Setembro Amarelo. Mas trazer à luz essa questão dos problemas enfrentados pelo cantor e produtor me fez refletir algumas reflexões.
A primeira: como a música mudou nesses últimos anos. Meu primeiro contato com a música foi numa época em que o Autotune começou a ser tema mais frequente sob o escrutínio da opinião pública. E, se em tempos atuais o software é utilizado de forma ampla como uma ferramenta criativa, lá atrás a situação não era igual. É doido pensar no que o cara passou por ser um tanto quanto incompreendido - para não falar que suas habilidades como artista sempre estiveram em xeque - e em como isso o afetou, psicologicamente falando. Mas, anos mais tarde, normalizamos o Autotune. Mesmo assim, se o T-Pain é pioneiro nesse aspecto, os hits dele são muito datados. Bartender é claramente algo dos anos 2000.
Eu gosto de assistir programas e documentários que fazem essa viagem para o passado recente. Isso é tema da segunda reflexão: Por mais que muita coisa esteja fresca em nossas memórias, é preciso um estímulo a mais para que as lembranças venham à tona. Já cansei de dar risada com a Bed Intruder Song, mas faz muito tempo que não me lembrava desse vídeo. A gente consome tanto conteúdo todo dia que o que já foi digerido instantaneamente entra no limbo das produções esquecidas.
Uma terceira reflexão deriva do assunto saúde mental. Um dos textos candidatos a estar na terceira edição desta news (antes do meu amigo fazer um post sobre empreendedorismo) possui o seguinte título: “Será que estamos gongando demais a Olivia Rodrigo?”. Vira-e-mexe a cantora é zombada por uma galera. Seja porque ela foi tão emocionada com um namoro que isso gerou um álbum inteiro sobre desilusão amorosa. Ou porque ela plagiou algumas músicas (tá, nisso ela mereceu ser gongada). Ou porque ela desafinou bonitamente num show de alguma premiação musical totalmente irrelevante. De todo modo: artistas favoritas do público mais jovem sempre passam por esse desafio da opinião pública. Foi assim com Restart, Selena Gomez, Fresno, BTS, Olivia Rodrigo.
Por mais que sejam públicas, essas pessoas do showbiz ainda são pessoas. Ricas, mas pessoas. E as críticas em massa devem ser muito difíceis de lidar. Eu não vou fazer o bom samaritano aqui, falando que a gente precisa ter mais empatia com quem quer que seja, porque como diria a Pitty, quemnãotemtetodevidro que atire a primeira pedra. Eu só estou refletindo sobre essa questão mesmo. Voltando ao T-Pain, ele comenta que teve que lidar com depressão entre 2013 e 2017. Durante o episódio, fiquei refletindo se o famoso Tiny Desk dele, cantando sem o famigerado Autotune, foi gravado no período citado acima. Pois bem, o próprio programa me respondeu minutos depois: o pocket show foi em 2014.
Saber que, à época do concerto, ele estava em sua própria batalha para superar a depressão trouxe uma camada a mais no show. Perceber o desconforto, a própria insegurança, o medo do público não gostar, o fato de não acreditar que tem voz para cantar sem qualquer auxílio tecnológico.
Na primeira vez que eu tinha visto o show, minha reação foi muito parecida com o restante: “Caralho, eu não sabia que T-Pain sabia cantar”. Ingenuidade nossa, não? Os puristas podem até cornetar a utilização do Autotune, como se o ato fosse um atestado de incompetência do músico, mas a real é que a arte e inovação estão juntos. Arte que somente segue uma tendência consolidada é como natureza morta. Pode até ser bem executado, mas cadê o lance disruptivo da coisa?
Se antes eu sempre pensava na frase “MC Kekel deveria agradecer ao Kanye West”, hoje eu mudo de opinião. Se o funkeiro pode mandar um melódico cheio de efeito vocal e falando sobre amor, quem permitiu isso foi T-Pain.
3. Demarcações do tempo
De todos os assuntos que me interessam, creio que música seja o meu favorito. Nunca parei para racionalizar sobre isso, mas deve ser porque, de todos os conteúdos consumíveis que podem existir no mundo, música esteve comigo desde que eu me conheço como gente. É a expressão artística que nunca me largou.
Uma das primeiras lembranças que tenho do Brasil sou eu ouvindo It Wasn’t Me no rádio do Monza 88 verde e ficando fascinado com a música, ao ponto de passar ANOS procurando por ela, até achar o nome dessa desgraça e descobrir que o Shaggy canta sobre como se safar depois de ter sido pego chifrando a namorada. A letra não é tão edificante, mas a linguagem musical me gerou um fascínio imediato.
Falar sobre música, pelo menos para mim, também é refletir sobre a minha própria história, em como meu gosto musical foi mudando e se moldando com o passar do tempo. Cada época da minha vida tem um artista ou álbum mais escutado, que passo meses obsessivo, até enjoar e superar a tara.
Eu curto revisitar esses favoritos do passado porque fazem parte de uma das fases da minha vida. É como dar um rewind nas próprias memórias, e a música é o timestamp que auxilia a parar exatamente em determinada era da minha história - seja ela positiva ou não.